Terapia Intensiva

Esses dias, tenho frequentado o CTI de um hospital em Belo Horizonte, para visitar meu avô. Com os avanços da medicina moderna e o aumento da expectativa de vida, poucos são os poupados dessa viagem a terra estrangeira, que começa logo na sala de espera.

Diferentemente dos quartos, o CTI tem horário de visita. Durante os tensos minutos que antecedem o horário marcado, familiares e amigos aguardam, com íntima ansiedade e resignação aparente, que a enfermeira responsável abra a porta e inicie o processo de admissão. Prancheta na mão, ela confirma o nome do paciente, e o nome e o grau de relacionamento dos visitantes com o visitado. De manhã e à noite, o máximo é de três visitas por paciente. À tarde, quatro. Não é permitido revezar, para evitar tumulto. Não é permitido entrar com bolsas e mochilas, que devem ser guardadas num escaninho próprio, numerado de acordo com os boxes dos pacientes.

A primeira impressão após a entrada é incômoda. Nos boxes envidraçados, pessoas em situação crítica exercem sua prerrogativa de continuar vivas, auxiliadas por todo tipo de aparelho, cercadas de tubos, monitores, balões. Em cada vitrine, uma placa de papel traz o nome, a idade e a data de internação. Quem passa no corredor vê tudo o que se passa, exceto se as cortinas estiverem fechadas.

Além disso, o CTI é barulhento. A música ambiente é um coro desconjuntado de bips intermitentes, pessoas falando (ainda que baixo), carrinhos transitando. O box do meu avô tem porta, mantida fechada porque há suspeita de infecção por H1N1 (não confirmada e pouco provável, já que ele é vacinado), e a vigilância sanitária assim exige. Não deixa de ser uma sorte. Isolados, o ambiente ao redor da cama dele se converte em espaço para um diálogo familiar.

Meu avô não está acordado. Dorme profundamente, entubado e ligado ao respirador. Não sabemos o quanto ele é capaz de ouvir do que dizemos, se é que alguma coisa. Não sabemos sequer se ele sabe que estamos lá. Mas conversamos. As máscaras que precisamos usar – de novo, ordens da vigilância sanitária – dão um aspecto onírico: sem vermos as bocas se mexendo, a conversa parece telepática. Nós o cumprimentamos quando entramos, nos despedimos quando saímos. Falamos dele quando estamos lá, e falamos de nós: nossa pequena família, as histórias, os nossos medos.

Minha avó pergunta para que tantos tubos ligados nele. Fica preocupada se ele está com frio: levou meias, e quer que coloquem um cobertor, porque ele é muito friorento. Ela é apenas um ano mais nova que ele, mas o estado de saúde dos dois é completamente diferente. Ele fuma três maços de cigarro por dia, já fez duas pontes de safena e mais angioplastias e cateterismos do que sou capaz de lembrar, teve um infarto, uma trombose arterial na perna. Ela fez uma angioplastia, anos atrás, e o médico apresenta o caso dela em congressos como exemplo do melhor resultado possível de um procedimento desses: nunca mais teve nada. Está quase surda, enxerga pouco, mas tem uma vitalidade que impressiona.

Vovó é uma pessoa pragmática. Não consegue conversar com o marido inconsciente, porque considera que ele não tem como ouvir. Reza em silêncio segurando a mão dele, e seus olhinhos atentos, atrás da máscara, percorrem nervosamente o ambiente, verificando se está tudo certo, se não há tubos fora do lugar, se vovô está quentinho, se os balões de líquido não estão vazios.

Meu tio quer entender o que está acontecendo. O que são os índices em cada monitor. Quais números são considerados bons. Por que os aparelhos apitam. Para que serve cada um dos remédios que está sendo injetado nele. Cada um dos artefatos no quarto. A cada vez que entra, verifica os números e faz algum comentário: “a oxigenação melhorou”, “estou achando a pressão meio baixa”, “a frequência cardíaca está estável”. Tenta enxergar sentido em cada pequeno sinal, quer interpretar as mudanças de posição do vovô na cama.

Minha prima, da primeira vez que foi visitar, não aguentou ficar. Disse que aquele não era o avô dela. Entrou em choque com ele sedado, entubado, privado da voz de trovão e do jeito expansivo, das piadas inconvenientes, do olhar doce. Depois, foi se acostumando. Aprendeu. Passou a querer ir vê-lo, a gostar de estar com ele em silêncio. Amando mais um pouco enquanto é tempo.

Mamãe é quem coordena a movimentação familiar. Médica, trabalhou por anos em CTI pediátrico, e dá as explicações, os nomes, os motivos de tudo. Escuta os médicos responsáveis, e traduz para nós os termos técnicos. Enxerga a situação da forma mais clara, e ajuda a manter expectativas sob controle. Não deixa que nenhum horário de visitas seja em vão: tenta ir a todos, e procura quem possa ir quando ela não pode. Conversa com vovô, conta as notícias, faz carinho. Disfarça a ansiedade.

Com 19 anos, ainda na faculdade de medicina, ela acompanhou meu avô a São Paulo, para fazer sua primeira safena na Beneficência Portuguesa. Desde então, e à medida que minha avó também foi envelhecendo e perdendo as forças, foi progressivamente assumindo o papel de levá-lo pela vida. Lá se vão 30 anos de uma abnegação dolorosa, de que ela hoje fala com mais tranquilidade, depois de muita psicanálise. Minha mãe é uma pessoa dos deveres, do fardo pesado, da responsabilidade a toda prova. Sofre em silêncio. Fala pouco da própria dor, mas seus olhos traem o cansaço e o desânimo.

E eu. Que cresci no colo do meu avô, ouvindo contar vezes sem fim as mesmas histórias dos mesmos livros, que eu exigia que fossem repetidas com as mesmas palavras. Que aprendi com ele a identificar passarinhos pelo canto, a reconhecer plantas, a colher da horta e do pomar. Que pude brincar com ele, enfiar-lhe varetas no cabelo de caracóis miudinhos, pintar suas mãos de canetinha hidrocor. Que recebi dele muito mais do que o simples afeto de um avô pela neta, que encontrei nele uma referência de amor e cuidado, um porto seguro pela vida. Que tive uma crise de choro quando entrei no box dele pela primeira vez. E que ali, segurando a mão do vovô, ouvindo aqueles bips, contemplando o corpo inerte, sinto ir embora o último laço que me prendia à infância. Cresci. Estou em alto-mar.

No CTI, estamos todos em processo. Para o meu avô, infelizmente, a melhora é incerta. Para nós, é inevitável.

5 respostas em “Terapia Intensiva

  1. Segurando as lágrimas aqui no trampo. Morri um pouco aqui lembrando o quanto ainda amo minha vozinha que se foi há mais de 20 anos, a vovó mais perfeita do mundo!
    Nós temos sorte, amiguinha.
    Bijos

  2. meu amor, o choro aqui é livre, dessa tua amiga que tá em alto-mar já há um tempo. Que teve um avô que nem esse teu aí. Que teve um pai-grande, que pegou uma parada estranha lá por terras de África, e por causa de quem toda essa história contada aqui é tão dolorosamente familiar que podia ser a minha. Que choro ainda escrevendo isso. Porque fazem oito anos, já. Oito anos, ainda. Parece que foi ontem, e foi numa sexta-feira, que entrei no CTI com meu irmão, e disse “vai. vai que a gente aguenta. vai que a gente segura”. E ele foi.
    A gente vem tentando.
    Um beijo do tamanho do universo.

  3. Resolvi escrever pra… ah, não sei bem para o quê. um pouco talvez porque passei por algo similar, um pouco pra dar um retorno. pra dizer sobre o quanto o seu texto me tocou. me emocionou. e pra agradecer por compartilhar com a gente.

    beijos.

  4. Pronto, eu disse. Você me fez chorar. Lembrei de tudo, do meu pai deitado, de como me preocupava em mantê-lo aquecido. Como chegava perto dele e dizia que o amava demais. Sou órfã. Mas tive o melhor pai que alguém pode desejar. E só isso já vale a pena. Beijo, querida.

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